Miguel Arroyo: Um Olhar Sobre a Educação
Miguel Arroyo não nasceu no Brasil, mas sua trajetória se entrelaçou com a história do país de maneira profunda e definitiva. Aos 90 anos, o pesquisador segue ativo, reflexivo e provocador. Suas palavras carregam experiências acumuladas por décadas de luta, estudo e observação crítica.
Natural da pequena Ribera del Duero, na Espanha, ele cresceu no campo, entre plantações de uva e trigo, ajudando a família desde cedo nas atividades agrícolas. No entanto, seu interesse pelos estudos despertou a atenção de um professor e, com o apoio da mãe, ele seguiu um caminho diferente dos irmãos: trocou a enxada pelos livros.
Essa mudança de rumo, aparentemente simples, revelou-se o primeiro de muitos deslocamentos — geográficos, políticos e intelectuais. Ao fugir da ditadura franquista e vir para o Brasil, Arroyo acreditava ter escapado do autoritarismo. No entanto, logo se viu diante de uma nova ditadura, a militar. Foi nesse cenário que ele aprofundou sua compreensão sobre poder, sociedade e educação.
Educação e política: uma relação inseparável
Desde o início de sua vida acadêmica, Arroyo entendeu que não há como falar de educação sem considerar o contexto em que ela se desenvolve. Para ele, qualquer análise que desconsidere o tipo de Estado e de sociedade em que vivemos falha em captar a essência dos desafios educacionais.
Essa visão tornou-se um dos pilares de sua produção intelectual. Na sala de aula e em seus livros, ele afirma que a educação reproduz, resiste e transforma. Ao mesmo tempo em que reflete as desigualdades sociais, pode ser instrumento de mudança profunda. Mas, para isso, precisa ser compreendida em sua complexidade.
Arroyo não vê a educação como um sistema técnico e neutro. Ela está impregnada pelas relações de classe, raça, gênero e território. Cada escola, cada currículo, cada política pública carrega as marcas da disputa entre diferentes projetos de sociedade.
Da sala de aula às políticas públicas
No Brasil, Arroyo mergulhou nos estudos de sociologia e ciência política. Cursou mestrado e doutorado, inclusive fora do país, e trouxe esse acúmulo para dentro das universidades e das secretarias de educação. Durante a ditadura militar, começou a atuar como professor e também se envolveu diretamente com a formulação de políticas públicas.
Foi na prática, junto com outros educadores, que percebeu como o discurso democrático nem sempre se concretiza nas estruturas de poder. Sua dissertação de mestrado investigou como a política educacional da época, apesar de se dizer participativa, funcionava de forma impositiva, centralizadora e autoritária.
Mais tarde, como secretário de educação em Belo Horizonte, vivenciou os dilemas enfrentados por quem tenta democratizar o acesso e o conteúdo do ensino em meio a um sistema desigual e excludente. Essas experiências alimentaram sua reflexão sobre o ofício de ensinar e a importância de ouvir aqueles que estão na linha de frente: os professores e os estudantes.
O cotidiano da escola e os sujeitos esquecidos
Entre os temas que mais mobilizam Arroyo, destaca-se a necessidade de compreender quem são os sujeitos da educação. Ele não aceita uma pedagogia que ignora as realidades concretas dos estudantes. Em sua visão, é preciso valorizar as vozes dos que historicamente foram silenciados: crianças negras, moradores das periferias, trabalhadores rurais, pessoas em situação de vulnerabilidade.
Essa postura aparece em obras como “Ofício de Mestre” e “Infâncias Quebradas”. Nestes livros, ele dá visibilidade a professores que enfrentam dilemas reais nas escolas públicas, que precisam se reinventar para lidar com contextos sociais complexos. Eles não apenas ensinam conteúdos; muitas vezes, acolhem, protegem, alimentam e ouvem.
Para Arroyo, não existe um único modelo de infância. Há infâncias diversas, muitas delas marcadas pela dor, pela exclusão e pela violência. E quando essas imagens se quebram, como ele costuma dizer, também se quebram as imagens idealizadas que os professores tinham sobre o próprio papel.
Currículos em disputa e a resistência nos detalhes
Outro conceito importante em sua trajetória é o de “currículo em disputa”. Ao contrário disso, em vez de ver o currículo como algo padronizado e imutável, Arroyo propõe entendê-lo como um campo de tensões. Em outras palavras, em cada sala de aula, os conteúdos são apropriados, reinterpretados e ressignificados pelos educadores e educandos.
Mesmo assim, diante de diretrizes oficiais e de uma Base Nacional Comum, professores resistem, adaptam e transformam o que ensinam. Assim, essa capacidade de reexistir, como ele define, mostra que a educação não se limita ao que está escrito nos documentos. Pelo contrário, ela se constrói no dia a dia, no encontro entre diferentes histórias e saberes.
Além disso, sua crítica vai além do conteúdo programático. Ele questiona as estruturas que sustentam a desigualdade dentro e fora da escola. Portanto, questiona o papel do Estado, a lógica do mercado, a dominação cultural e o apagamento das vozes populares.
Os movimentos sociais como base da educação popular
Para Arroyo, não há como compreender a educação brasileira sem olhar para os movimentos sociais. Desde os tempos da escravidão, passando pelas lutas por terra, por creches, por trabalho e por moradia, as classes populares constroem formas próprias de aprender, ensinar e transformar.
Ele menciona o movimento das mulheres negras por creches, ainda na década de 1970, como exemplo de como a luta por educação nasce do enfrentamento das desigualdades estruturais. Essas mulheres não lutavam apenas por vagas; lutavam por dignidade, por condições de existência, por futuro.
Esse olhar atravessa toda sua obra. A ideia de que os sujeitos populares não apenas resistem, mas reexistem, está presente em seu livro mais recente, “Vidas Reexistentes”. Nele, Arroyo propõe que, antes de tudo, os marginalizados afirmam sua presença, sua existência e sua humanidade.
A educação como espelho do Brasil
Segundo Arroyo, pensar a educação é pensar o país. É olhar para suas contradições, suas desigualdades e suas possibilidades. O Brasil continua marcado por um modelo econômico que privilegia o capital, o agronegócio e a exportação, mesmo à custa da fome e da miséria de milhões.
Nesse contexto, a escola pública cumpre um papel ambíguo. Por um lado, pode reproduzir o sistema, mantendo as distâncias sociais. Por outro, pode tornar-se espaço de crítica, resistência e transformação. Tudo depende de como ela é ocupada, de quem são os sujeitos que a constroem e das escolhas pedagógicas que orientam sua prática.
Para Arroyo, não basta defender o direito à educação. É preciso perguntar que tipo de educação se quer. Uma educação meritocrática, que premia poucos e descarta muitos? Ou uma educação libertadora, que reconhece e valoriza as diferentes formas de saber?
Conclusão
Miguel Arroyo não oferece respostas prontas. Seu pensamento provoca, inquieta e convida à reflexão. Ele insiste que a pedagogia precisa nascer do chão da escola, das vivências dos educadores e educandos, das lutas populares, da escuta atenta aos que muitas vezes são ignorados.
Sua trajetória mostra que pensar a educação é um ato político. É escolher de que lado se está. É reconhecer que nenhuma teoria, por mais sofisticada que seja, vale mais do que a vida concreta dos sujeitos da escola.
Ao completar 90 anos, Arroyo permanece como uma das vozes mais lúcidas e corajosas da educação brasileira. E seu legado desafia todos aqueles que acreditam no poder transformador do ensino a olhar para além das grades curriculares, para além dos muros da escola, e enxergar o Brasil real — com seus desafios, mas também com sua potência.
Linkes de Saida
- Faculdade de Educação da UFMG – Homenagem a Miguel Arroyo
- Obras de Miguel Arroyo na Editora Cortez
- Prêmio Jabuti Acadêmico – Edição 2024
- Movimento Nacional por Direitos Humanos e Educação Popular
- Currículo em Disputa – Reflexões sobre a prática docente
- Brasil de Fato MG – Entrevista completa com Miguel Arroyo
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